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Quando a psicóloga se vai

  • Foto do escritor: Juliana Guidolin Perrenoud
    Juliana Guidolin Perrenoud
  • 27 de abr. de 2024
  • 6 min de leitura

Era um consultório em uma rua moderadamente movimentada de Americana, que tem esse nome devido aos estadunidenses que vieram fugidos pra cá da guerra de secessão. O consultório tinha uma energia meio esquisita, parecia abandonado, mas não de um jeito largado. Era limpo, paredes amarelas, uma escada que levava ao consultório da Elisabete no segundo andar era circundada por aqueles blocos de vidro transparentes, dando uma privacidade não tão privativa.

Estacionei meu carro, um Ford Ka preto que eu carinhosamente apelidara de azeitona, pela cor e formato, debaixo de uma árvore de médio porte, na Rua 30 de Julho. Tenho a impressão de que em alguns lugares da cidade as árvores não crescem tão frondosas. Deve ser o ar, ou o solo. Caminhei nervosa para a minha primeira consulta. Já tinha uma experiência anterior com psicólogas, desastrosa, por sinal. Havia ido em uma consulta “com desconto” em uma profissional da igreja que frequentava. Era jornalista voluntária na Paróquia São Domingos, o que me trazia uma certa ligação com o lugar, embora não fosse católica das mais assíduas.

Por já ter esse traumático contato com a psicologia, fui anunciada pela recepcionista (que não devia ter mais que 17 anos, usava um óculos de grau, uma camiseta polo branca com a logo do consultório e o balcão com os mesmos blocos de vidro da escada na parte de baixo) e subi tremendo as escadas que levavam à porta sem número no final do corredor. Elisabete Ferreira Von Ah, indicava a placa da entrada. Bati e fui autorizada a entrar.

Ali começava o relacionamento mais profundo com uma desconhecida que tive em toda minha vida. Uma relação que terminou 18 anos depois com a morte sem aviso da minha terapeuta.

Lembro-me que estava aguardando para fazer as unhas em julho de 2019. A temperatura estava amena e o céu levemente acinzentado. Recebi a ligação de uma colega de curso para quem eu havia indicado tratamento psicológico. Na verdade, eu achava que todo mundo precisava fazer terapia, e ela era a única a quem eu havia entregado meu consciente e subconsciente. Confiava cegamente na Bete e achava que ela era capaz de consertar qualquer coisa ou situação.

Minha colega estava em uma relação conturbada, havia se casado muito nova e era completamente dependente do parceiro, financeira e emocionalmente. Estava há uns 3 meses em tratamento com a Bete, mas já tinha um apego emocional que fui perceber depois. Achei que a ligação fosse tratar de alguma crise dela com o marido, um pedido de aconselhamento, um desabafo. Mas não. “Você soube da Bete?”. Tinha visto-a 10 dias antes. Estava amarela, magra, mas era a mesma mulher de sempre, com suas análises precisas, inteligentes, quase sobrenaturais. A Bete era aquela mulher que conseguia me entender no olhar, que tinha uma percepção do mundo quase como uma entidade.

Tínhamos passado juntas pelos maiores desafios da minha vida, pelas maiores tragédias. E aqui eu não estou falando de pouca coisa não. Ela esteve comigo quando perdi minha bebê de 9 meses ao nascer. Na minha separação, 9 meses depois da morte da bebê. Ficou comigo quando descobri todas as coisas pesadas, esteve ao meu lado quando decidi retomar meu casamento, quando engravidei novamente e tive tanto medo de perder o bebê que quase quis que não tivesse engravidado. Quando fui demitida com uma bebê de 9 meses e quando decidi fazer um curso que me daria uma outra profissão.

“Pede pra ela entrar... Estava te esperando.” Era uma segunda-feira de março de 2015, logo depois do dia 15, quando eu tinha entrado em trabalho de parto com 37 semanas (é assim que contam os meses da gravidez agora. Estava na reta final, com quase 9 meses) e perdi a bebê. As linhas telefônicas estavam com problema, tinha tentado falar com ela durante todo o caminho de volta de São Paulo para Americana, sem sucesso. O telefone dava sinal de ocupado, coisa que as gerações mais novas nunca entenderão. Não tinha caixa postal. Naquele ano, ela já estava atendendo na Rua Uruguai, uma rua cheia de consultórios e algumas casas grandes, um inferno para estacionar. Por mais complicado que fosse pra achar vaga, parece que a minha estava sempre lá, reservada. Não fui pra casa após a alta hospitalar, em vez disso, pedi para o Eduardo me levar direto ao consultório. Parou logo em frente, na vaga reservada para cadeirantes. Estava recém-operada, achamos que eu merecia o espaço por alguns minutos. Lembro-me pouco do percurso, a gente passando pelos muros altos da Nardini margeada por enormes pinheiros pelo lado de dentro.

Cheguei sem avisar, sem conseguir marcar hora, fora do meu horário, sem nenhuma comunicação. Ainda assim, ela estava me esperando. “Sabia que você viria”, me disse, braços abertos. Eu costumava ser recebida com um beijinho, coisa de paulista, não sei se ela tinha essas intimidades com outros pacientes. Mas eu começara lá uma jovenzinha de 22 anos, que tinha alguns problemas de relacionamento e autoestima. Embora tivesse tido uma infância saudável e pais carinhosos, obviamente as relações com minha mãe, que achei que fosse resolvidíssima, um dia apareceu. Nada grave, meus pais são ótimos.

Nesse dia nos abraçamos e choramos. Juntas. Ela perdeu minha filha junto comigo. “Sabia que algo de muito grave iria acontecer com alguém muito ligada a mim. Fui à igreja Matriz e procurei Santo Antônio (padroeiro da cidade e personagem principal da linda igreja construída em estilo Neoclássico). Não era o suficiente. Fui até o altar do Santíssimo e rezei”. Não costumávamos falar de religião, eu sabia que ela era católica por alguma sutileza que conversamos em algum momento, mas ela era tão discreta que aquela mulher que me conhecia tão profundamente era quase um mistério para mim. Sabia que ela tinha dois filhos, perguntei uma vez. Sabia os nomes deles, um era Arthur, o outro não me lembro. Sabia que era casada e assim continuava, e que participava de um grupo de psicanálise na Unicamp. Mas era só.

Quando a encontrei magra e amarela em 2019, fiquei em choque, mas não quis transparecer. “Tive uma anemia na última viagem que fiz”, ela me respondeu ao ver minha surpresa. Não gosto de comentar sobre a aparência das pessoas, ainda mais de forma negativa, ainda mais sendo para aquela que sabia ler minha alma.

Então, quanto minha colega soltou aquele “a Bete morreu” ao telefone, não tive reação. Pensando bem, acho que nem entendi direito o que estava acontecendo. Como assim a Bete estava morta? E agora, o que seria de mim sem meu porto seguro? Um dia antes, ela havia me visitado em pensamento. Estava fazendo algo corriqueiro de casa, e pensei nela com muita força. Hoje penso que foi uma despedida.

Mas eu não percebi a dimensão do que havia acabado de acontecer. Fiquei em negação. Não fui ao velório, preferi sair com uma amiga. Não queria encarar aquela perda. Fui egoísta e me ressinto disso até hoje. Em fevereiro de 2020, escrevi um texto para ela no Facebook (éramos amigas também no virtual). Ela postava fotos de flores, alguns trechos de livros, poucas coisas, na verdade. “Muitas saudades dos seus ensinamentos. Todos os dias sinto sua falta, vou levar você eternamente no meu coração”. Então, em agosto do ano seguinte, a dor não passou. Postei um trecho de Santo Agostinho que ela me deu em um pedaço de papel quando estava sofrendo (talvez por amor, não conhecia outro sofrimento naquela época):

“É impróprio afirmar que os tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras. Existem, pois, estes três tempos na minha mente que não vejo em outra parte: lembrança presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras.” Santo Agostinho

Encontrei uma outra psicóloga, quis colocá-la no mesmo lugar. Não coube. Ninguém caberia. Algum tempo depois, achei um psicanalista, homem. Aquele lugar feminino dentro de mim não poderia nem seria jamais ocupado. Até hoje, quando estou em crise, fico pensando: “o que será que a Bete diria disso tudo?”. Só encontro seu sorriso no fundo do meu pensamento. Ela era assim, uma otimista. Falava as coisas mais difíceis com um sorriso no olhar.

Do meu depoimento no Facebook, encontrei outras vidas que foram tocadas por ela. Inúmeras. Até hoje me comunico com uma delas. Falamos da vida, falamos da morte. Nos apoiamos nessa orfandade. Aliás, foi ela quem me indicou nosso psicanalista, somos irmãs de psicanálise. Para outra colega (que descobri também ter ficado órfã da Bete), indiquei aquela primeira mulher, a que não coube. Ela se encaixou perfeitamente na vida dessa colega. Que bom.

Ainda hoje, quando passo pela rua Uruguai, meu coração fica bem apertadinho, naquela saudade que só quem amou, sente. A dor de perdê-la foi tão grande que cheguei a procurar no Google sobre “o que fazer quando sua psicóloga morre”. O Google não soube resolver, e eu até hoje não sei.

 

 
 
 

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